terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Genetismo


Porque tantas vezes nos esquecemos do que há tanto tempo está já escrito, fica Genet, na sua sempre tão bela escrita. Porque a sua vitória foi verbal, assim o disse; porque da sumptuosidade das palavras se socorreu; porque ter-se socorrido foi uma bênção para nós, se abençoados formos na compreensão de que a masculinidade nunca passou de um mar de fragilidades, de uma prisão de que só escapamos em ballet.


Ei-lo, há mais de 50 (cinquenta!) anos, numa passagem como só ele saberia tecer, como só ele saberia construir a partir da vida que reservada lhe esteve. Para fazer-nos chorar… e por mais.

Culafroy passeava entre lençóis, descalço. Vivia minutos leves como minuetes, feitos de inquietação e ternura. Chegou a aventurar-se num passo de dança em pontas, mas os lençóis formavam paredes suspensas e corredores, os lençóis imóveis e dissimulados como cadáveres uniam-se e podiam encarcerá-lo e estrangulá-lo. (…) Se tocasse o chão apenas com um gesto ilógico do pé esguio estendido, poderia tal gesto fazê-lo soltar-se, deixar a terra e atirá-lo por entre mundos de onde não voltaria, ao espaço onde nada poderia fazê-lo parar. Pousou de planta inteira o pé no chão, para lhe conferir uma segurança maior. (…) Aquela criança que nunca tinha visto um bailarino, nunca tinha visto teatro nem actor, com um sentido divinatório espantoso compreendeu um artigo de página inteira que só tratava de figuras, entrechats, battus-jettés, tutus, sapatilhas, tela, rampa e ballet. Pelo aspecto da palavra Nijinsky (a haste do N, a descida da argola do j, o salto da argola do k e a queda do y, forma gráfica de um nome que parece empenhado em desenhar o impulso com recaídas e pulos no palco de saltador que não sabe sobre qual dos pés pousar) adivinhou a leveza do artista, como um dia virá a saber que Verlaine não pode deixar de ser um nome de poeta-músico. Aprendeu sozinho a dançar, como aprendera sozinho a tocar violino. Dançou, portanto, como tocava. Todos os seus actos foram servidos por gestos, não ao serviço daqueles, mas de uma coreografia que lhe transformava a vida num ballet perpétuo. Rapidamente se pôs em pontas e em todo o lado: no talho, quando apanhava achas de lenha, no pequeno estábulo, debaixo da cerejeira… Punha os tamancos de lado e dançava em cima da erva com peúgas de lã preta, de mãos presas à ramaria mais baixa. Na vida, povoou os campos com uma multidão de figuras que queriam passar por bailarinas de tutu de tule branco, que se mantinham um menino de escola pálido, de bibe preto, a procurar cogumelos e dentes-de-leão. (…)


Nossa Senhora das Flores

Jean Genet, 1951

(Difel, 1987; Trad: Aníbal Fernandes)

Plumíssimas Revoluções


Houve um post que me deu mote. Mote para dizer algumas coisas consonantes com a linha condutora desse mesmo post. Depois, percebi que as coisas que queria dizer estavam já ditas numa produção do país de nuestros hermanos, que ao que parece estão a fazer com que não passe de uma baboseira a velha frase de que dali nem bons ventos, nem bons casamentos, a julgar por provas (como esta, ou como esta) contrárias à baboseira.


Das palavras de Ricardo Lammas e Javier Vidarte, retiradas daqui, me faço valer em apoio à (sobre)vivência tão bem ilustrada pelo limbo entre o babuíno e o ser humano, tão bem apontada como desumanamente erguida sobre a esfarrapada promessa que julgávamos haver na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ora, leia-se Llamas e Vidarte:

…os animais já têm a sua Declaração Universal dos Direitos do Animal desde 1977 [pelo que se sublinha a pertinência dos 30 anos referidos no post-mote]. Quase se poderia dizer, ironicamente, que os animais nos levam uma dianteira, ainda que nós [, pessoas LGBT,] não queiramos a nossa própria declaração de direitos humanos e civis, mas em vez disso queiramos é não conformar-nos com o que vale para toda a gente, porque não é para toda a gente que afinal vale. (…) Observamos um eco distante, um certo paralelismo entre a tónica geral e os conteúdos da Declaração Universal dos Direitos do Animal e o que se vem fazendo connosco e com os nossos direitos, com o modo como nos concedem amavelmente e num acto de grande generosidade – que grande é o coração heterossexista! – estes direitos.

Ao proporem-nos que na referida Declaração Universal dos Direitos do Animal exercitemos a substituição da expressão “animal” por “não-heterossexual”, Llamas e Vidarte deixam-nos a pensar sobre o quanto há por fazer e dão inteira razão ao que no mencionado post-mote podemos ler. Para acabar, deixo ainda palavras dos mesmos autores, que encetam tanto de cruel quanto de belo. Porque talvez na vontade de arrumarmos de vez com a crueldade esteja toda a beleza que nos assiste. Sem mais, nem menos, surge como boa verdade que para que alguém LGBT "alcance o respeito social e não sofra de discriminação, não haja outro remédio senão converter-se em lince. Outras pessoas haverá que se consolarão vendo todas as noites a sua gasta gravação de Os Pássaros, de Hitchcock, sonhando com plumíssimas revoluções".


quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

As Novas Cores do PS


Digam lá se não era tão giro (e nada mau!) se fosse verdade? ;-P

Espinhos de Rosa Murcha

Podes ser gay ou lésbica. Podes meter-te na cama com quem quiseres, mas não te orgulhes de amares alguém. Podes viver anos a amar esse alguém, mas não esperes que te reconheçam a beleza do amor como se gostasses de alguém que não é do “mesmo sexo” que tu. Podes brincar aos casamentos, mas não te armes em cara(-de-)pau de corrida, que rebentos não são para ti.
Podes e deves votar em nós. Nós prometemos ajudar-te a fazer de conta que o teu casamento é igual a qualquer outro.
Teu, PS.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Pequena Ode a um Anjo


A noite é fria e da janela vejo um negro. Vejo as lamúrias em repetição quotidiana sobre o que teremos que continuar a viver, sobre a crise que é a repetição de se falar em crise. Vejo o fumo do meu cigarro desvanecer-se sobre o fosco translúcido do vidro que me abre a noite. Vejo a lembrança de mais um dia concorrido pelos rostos desiludidos que nos rodeiam, assim como vejo o brilho lembrado de quando acreditávamos mais nos olhos brilhando. O negro tem ainda uma ténue esperança de azul, que cada um de nós saberá (ou desejará saber) onde ir buscá-la. Mas sobre todos os negros vejo um anjo. Vejo-o entrelaçado entre o frio, entre o negro, entre os brilhos que mais do que lembrados me são presente, entre as tantas coisas que não deixa que deixem de me ser coisas, entre o que entre mim e ele se faz como espaço de vôo conjunto. Não sou mais nem menos do que qualquer um de vós por me ver abraçado por um anjo, tal como com ele consigo não ser mais nem menos do que as asas que mereço. Acreditar num anjo é a lanterna que me ajuda a vislumbrar um bocadinho mais de azul no negro olhado da janela. O mundo continua a ser bem mais imenso do que a beleza de um anjo, mas sem ele certamente me seria bem menos imenso. E, a defraudar o poeta, apetece-me dizer: Boa noite. Eu vou com o anjo.


Jorgetes e Manelinhas, vão de retro!


Em estúpida resposta pseudo-desculpabilizante disto

“O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Jorge Ortiga, disse ontem que a Igreja «não tem nada contra» casamentos entre católicos e fiéis de outras religiões, mas pediu que essas uniões respeitem os «valores católicos» das famílias. […] Segundo o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel Morujão, a advertência do Cardeal Patriarca é um “justo conselho de realismo” e afastou de qualquer «discriminação ou menosprezo» pelo islamismo”.
Jornal Metro, 15 de Janeiro de 2009

Eu, que sou muito, muito burro, gostava que me dissessem:
1. porque é que alguém que “não tem nada contra” alguma coisa, prefere e profere a supremacia de “outra” coisa?
2. o que são, nestas matérias, a “justiça” e o “realismo” de um conselho?
3. como é que depois de tanto disparate junto e de tão explícitos ataques ainda falam em ausência de “discriminação ou menosprezo”?
4. porque é que há ainda quem não veja que… cada tiro, cada melro?
5. por quanto tempo haverá gente a seguir “conselhos” de semelhante seita?

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Pensem muito mais que duas vezes…


… antes de ouvirem este idiota chapado (e acautelem-se não com os amores, mas com a probabilidade de ferirem TODA a sensibilidade que vos reste ao clicarem aqui).
Contigo, cara feira, é que é de certeza difícil dialogar!
Ainda bem que tu “os” (!) respeitas (tanto que te demarcas bem "deles"), ou não sei o que seria…
E, já agora: quem é que em Portugal já leu a Bíblia?
Vai mas é fumar! E que mais reacções haja à baba verbal que deixaste sair dessa bocarra!

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Flores


Ele veio nas flores
Elas, tantas
Como dele, tanto

O mar é de odores
A que sabem as flores
Como se sabe o canto
Cantado nas cores

Ele veio nas flores
Com elas, tanto
E com ele, o canto

Tocado em amores
De que se fazem as flores
Para que sejam tanto
Quanto os meses de (en)canto


(em atraso dos habitualmente celebrados dias 6)

domingo, 4 de janeiro de 2009

Requiem para Lisboa


Se Lisboa fosse um Requiem, tê-lo-íamos escrito mais belo do que muitos. Na chuva dos dias que nela houve, houve o céu limpo que lhe oferecemos, houve o abraço da chegada, que é sempre como se não o fosse porque estávamos já lá. Se Lisboa fosse um Requiem, as primeiras notas soariam baixinho no cuidado de acolher, em sobretudo cor de mel, em sorrisos cicerónicos que nos abrigam de muitas chuvas, no caldo verde a saber à felicidade com que enganámos a morbidez da composição. Se Lisboa fosse um Requiem, haveria gente cantando na brancura de uma casa onde pão e vinho sobre a mesa se abriu a gentes que traziam vestidos e a outras tantas gentes que sabem vesti-los. Haveria gente feliz a percorrer um bairro tão alto quanto a vontade de subir ao céu e de nele nos encontrarmos um dia sentados, sem anos contados, sem deuses maiores do que nós, com anjos como os que buscamos nos dias e nas noites ou com diabos sem género mas de pele e de alma frescas. Se Lisboa fosse um Requiem, teria jantares maravilhosamente servidos no bairro ainda alto, teria éter a fazer continuar o céu que lhe inventámos, só para descer ao feliz inferno de um cubículo onde outras gentes vivem de esvoaçados vestidos, só para sorrirmos nas gotas, feitas mais de éter que de chuva, de molhados desejos, nesse inferno ou noutros, procurados na retaguarda de um carro, num quarto com um adónis azulado em quadro que a noite veste de cobalto, nas mãos de um rapaz que inferniza um tão querido tio pelas palavras que não lhe dirige depois de tocá-lo. Se Lisboa fosse um Requiem, não saberia senão ver-se enganada no prenúncio da morte, ou não fossem imensamente nossos o sorriso e o gesto insistentes da Tarantella, o breve e sabido fingimento de sermos aqueles que não morrem nunca. Se Lisboa fosse um Requiem, teria um fim tão saudoso quanto mascarado: de Genet cantando amor, de Rufus-Judy ondulando as mãos como Amália, de um porno-terno a explicar porque há quem nos ame e quem não nos ame mais, de um telhado de onde pudemos ver o rio a que quereremos sempre voltar, de um tio que nos aquece a casa para nos recompor a partitura e nos fazer cantar menos mal. Se Lisboa fosse um Requiem, seria feita de nós, que nela fomos tanto quanto a vontade de sermos quem somos. Avé.