terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Simbolismos da Aliança


O que está em causa no debate em curso sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo não são os comportamentos nem os factos mas algo mais complexo: o poder das palavras e o edifício simbólico que elas constroem. E isso está bem patente no projecto de lei do PSD, que opta por chamar “união civil registada” e “parceiros” ao que os outros chamam “casamento” e “cônjuges”. E isto porquê? Porque uma parte da população (sobretudo, a mais católica) se sente ferida com a linguagem. Se as regras da mobilização militar nos estados unidos proibiam, até há pouco tempo, a declaração reflexiva “Eu sou homossexual” era porque isso podia ser interpretado como uma tentativa de sedução ou como uma agressão. Aceder assim a tão poderoso e antigo edifício simbólico (o casamento) pode parecer uma revolução, mas é uma revolução conservadora. Todos nos devemos regozijar com a resolução de problemas práticos e legais. Mas é preciso não esquecer que integrar a ordem do discurso a que pertencem as representações sociais do casamento significa uma submissão à linguagem que sempre procedeu pela violência e pelo poder discursivo de impor uma definição de homossexual.


Ao Pé da Letra

Sobre a ordem e o poder da palavra “casamento”
António Guerreiro
Expresso – Actual – 09 de Janeiro 2010

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Chorar por Lhasa e restar ouvi-la


A morte devia ser ainda mais castigada quando nos leva pessoas assim.

Vergílio


Porque tenho francas dúvidas de que o Via Fáctea pudesse recomeçar-se em 2010 com palavras mais sábias do que estas, num mundo e num país cada vez menos sábio.

Todo o país está podre de estagnação, vós moveis um pé no lodaçal e ficais estoirados do esforço ao fim do dia. Mas nunca vos perguntais para quê, nunca vos perguntais o que isso quer dizer, nunca vos perguntais com que direito haveis de ser boi até ao fim da vida. Parai, ó estúpidos, suspendei um momento esse vosso trabalho animal e perguntai-vos se é essa a vossa vontade, se um instante da vossa tarefa cavalar é isso com que sonhais para vosso prazer. Porque é que não fazeis aquilo que quereis? Porque é que não ergueis o vosso berro de revolta? Não falo apenas dos que suam que se fartam por um bocado de pão. Não falo apenas dos que amocham como bestas por uma tigela de caldo. Falo de vós todos, dos honrados pais de família, os honrados funcionários com um ordenado a tanto a hora da cronometragem, os honrados comerciantes de pele esverdeada dos dias sem sol, as dignas esposas zeladoras da sua castidade até que à noite o marido lhes suspenda o zelo, as donzelas com o desejo fechado a cadeado, os politiqueiros de opinião trancada e partidária, os polícias do zelo pistoleiro, os futebolistas a tanto o pontapé, jornalistas, médicos, advogados – toda a imensa manada trabalhadora que se abate sobre o país e lhe entala a movimentação. Mas falo mesmo dos tubarões do capital, banqueiros atolados em moedas que são as fezes, o excremento da ganância e da vileza, grossos empresários que quereis empresariar o mundo, o céu com a vossa fumarada, as almas com as vossas cadeias e os rios e os peixes deles com a vossa matéria excrementícia...


Vergílio Ferreira
em nome da terra