sábado, 24 de maio de 2008

Homo-Amantes


Interessou-me bem menos o facto da publicação pertencer à chamada imprensa cor-de-rosa do que o muito positivo facto de ter conseguido ser isso mesmo: cor-de-rosa. São duas páginas inteiras da TV Guia de 9 de Maio de 2008, com fotografias em grande tamanho versando o namoro de Pedro Caldeira Júnior com um decorador britânico (ressalvando que as pessoas em causa poderiam, a meus olhos, ser quaisquer outras). Quando se atende às legendas, lemos coisas como “fez questão de ir receber a sua cara-metade ao aeroporto”, “o decorador com o maridão” ou "muito felizes". Pois bem: eis que o cor-de-rosa se instala afirmativamente. A distracção que me permitiu a revista foi mais do que distracção quando me apercebi que se me interessasse verdadeira e legitimamente por estas tricas tinha por aqui referências positivas (não necessariamente de identificação pessoal) por me darem a saber que dois homens são versados como “cara-metade”, que nos é dito sem rodeios (pouco importa aqui que seja ou não verdade) que estão um “com” o outro, ainda por cima com "felicidade", que há um destemido rótulo (é bom para os tempos que correm) de “maridão” (e quero lá saber do brasileirismo!).

O breve texto da segunda página também surpreende afirmativamente: “o filho do ex-corrector da bolsa Pedro Caldeira está apaixonado e feliz da vida. Basta reparar no sorriso de Pedro Caldeira Júnior (…) quando foi buscar o maridão ao aeroporto de Lisboa… As saudades já deviam ser tantas, que Caldeirinha encheu-o de beijinhos”. Sim, sim e sim: está apaixonado, está feliz, está da vida, foi buscar, sorri, tem saudades, encheu de beijinhos. Seguramente é para vender, mas há coisas potencialmente muito boas para vender a caminho da afirmação da pluralidade, não tanto da vida, mas do género das personagens da vida. Pena é que publicações tidas de mais qualidade do que esta continuem a nada dizer e a nada fotografar, a dizer e a fotografar apenas as hegemonias e a ignorar, quando não a malograr, que também homens e mulheres podem homo-amar-se, que podem esperar-se com saudade, que podem beijar-se ternamente.
Destes cor-de-rosa precisamos. Ainda muito.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Mais Arco-Íris


Foi muito mais do que possa dizer-se em poucas palavras. Mas seguramente um sentido de que (me) valeu muito. Um punhado de gente com vontades discutiu, no literal e no metafórico sentido da discussão, a transexualidade. Melhor dizendo, discutiu o que pode encarar-se como a ética com (e não na) transexualidade: que é a do respeito pela forma como a mesma se vive e, logo, a de como achamos nós perceber que ela é vivida. A intenção maior foi, que outra não seria ética, a de ajudar a pintar afirmativamente mais uma cor, feita de tantas dentro dela, de arco-íris.
Num agradecimento sincero e (sinto que) recíproco a quem se quis juntar, sob a sempre sabedora mão de quem organiza coisas assim e que na história, pelo menos de nós, ficarão.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Escrita Ensonada


Não acredito que alguém possa escrever o que não vive. Não acredito que alguém possa escrever por dentro sem a pulsação arrepiante do que vem, em maior ou menor distância, do que acreditamos ser por fora de nós. Entendi hoje que o sono me é pulsação e arrepio dos mais vívidos: o de nos deixarmos partir ao abandono de nós, na exacta medida em que deixamos partir ao abandono quem amamos. O sono revela-me muitos dos porquês da escrita: ou porque nos mantém vivos no desespero de não o alcançarmos, ou porque nos certifica que o desejamos intensamente quando conseguimos que seja repousante, ou porque nos leva a esquecermo-nos dele quando nos repôs grande parte da vida, ou porque nos obriga ao abandono de quem mais amamos para que dormindo esteja ainda mais connosco.
O sono torna necessariamente diáfana a fronteira entre o que está por dentro e o que está por fora de nós. Porque a voz arrastada que o prepara pode às vezes fazer pulsar muito mais do que algumas das vozes que vigilantemente produzimos. No abandono mutuamente consentido. No fim do desespero que anuncia. Na estreiteza dos braços superficialmente inertes mas profundamente entrelaçados. Ou nas fronteiras que apostarmos em dissolver.
Para que eu continue a acreditar no porquê de muitas escritas.
Chíuuuuuuuuuuuu...

domingo, 11 de maio de 2008

Funny Monkeys


É um facto que me divirto imenso com estas criaturas e que às vezes sinto que aprendemos com elas, ou que as devíamos olhar mais atentamente para pensarmos melhor no que andamos a fazer. Dois exemplos. No primeiro caso, invejo-lhes a lição de dança a que adorava submeter-me, no segundo caso enalteço-lhes o ar orgulhoso e suportivo à performance de artista queer.
Divirtam-se tanto quanto eu.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Feitiço Viagra


Pode certamente haver lucidez amorosa e mérito em “amar um devasso” ou uma “devassa”, se se preservar o amor e se se souber o que se quer fazer com a devassidão. Estou apaixonado por esta lúcida e meritória mulher, leitora que escreve a um diário norte-americano! Leiam lá e digam se não nos dá uma lição de feminismo? Machista é o que a pastilha lhe inflige, como a tantas outras mulheres, sobretudo se desejado mais o repouso do que o desejo. Tal como se inflige machismo a tantos outros homens, orientações sexuais à parte, que prisioneiros se quedam de (eventuais) benefícios do medicamento, não vá o gasto (económico, fisiológico, narcísico, performativo…) ser em vão.
Admitindo que às vezes possa ser um motor de arranque, que sobretudo sirva o fármaco para ouvirmos mulheres (ou homens) que falam assim.

É que não vá o feitiço voltar-se contra @s feiticeir@s...

Tenho 62 anos e sou mãe de seis filhos, hoje adultos. Há dois anos, quando comecei a constatar a diminuição do ímpeto do meu marido, que tem 64 anos, tive uma imensa alegria. E o que foi acontecer? Inventaram um medicamento chamado Viagra e eis que o devasso do meu marido voltou ao activo. Amo-o muito, mas acho que já merecia bem um repouso. Sem contar que o medicamento custa dez dólares o comprimido e, só na semana passada, tomou quatro!
Courrier Internacional – Número 146 – Abril de 2008

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Ser Feliz


Só pessoas como Chavela podem dizer, com a voz no mais fundo recanto do coração, coisas assim. Num cheiro das mulheres que prenuncia como desejadas. A conceder direito aos amantes mas não aos senhores. A homenagear as más senhoras. A regar a voz e o mundo com vinho, flores e sol. A rebentar de liberdade cantada, em janelas abertas, em varandas tentadoras. Sem ser de lugar algum, sendo de todos eles. Sem idade nem devir.
E a dizer-nos a mais bela de todas as verdades: que a felicidade nos dá a cor e o ser.

No soy de aquí

Me gusta el sol y la mujer cuando llora,
las golondrinas y las malas señoras,
saltar balcones y abrir las ventanas,
y las muchachas en abril.
Me gusta el vino tanto como las flores,
y los amantes pero no los señores,
me encanta ser amigo de los ladrones,
y las canciones en francés.
No soy de aquí ni soy de allá,
no tengo edad ni porvenir,
y ser feliz es mi color y identidad.
Me gusta estar tirando siempre
en la arena, o en bicicleta
perseguir a Manuela,
y todo el tiempo para ver
las estrellas.
No soy de aquí...

Chavela Vargas
(em imagem maravilhosa de Gala Dittmar)


quinta-feira, 1 de maio de 2008

Esquizómetro


Breve mas elucidativa definição de esquizofrenia: “doença mental grave que se caracteriza por (...) alterações do pensamento, alucinações, delírios e embotamento emocional com perda de contacto com a realidade, podendo causar disfunção social crónica" (Wikipédia).

A leitura do JN de ontem resultou-me em experiência absolutamente potenciadora de esquizofrenia, espero que temporária. As duas primeiras páginas expandem os recentes anúncios do aumento dos cereais, com valores estimados em TRINTA E SEIS POR CENTO para o PÃO, no mundo e na nação. A alucinação começa: apelos da ONU e da Rede Europeia Anti-Pobreza são reduzidos a pequenas caixas contrastantes com a imensidão do assunto. Pelos vistos, mas sobretudo pelos não-vistos, a pobreza é inevitável, incapaz de fazer frente aos políticos que não nos saem da frente. Do pensamento salto para o delírio, no desespero por falta de realidade, que julguei que ainda nos assistia, mas que afinal não assiste coisíssima nenhuma (não defenda eu o assistencialismo). O embotamento emocional também começa a dar sinais: vou ficando sem emoções, porque o mundo e a nação repetem o inominável - que se morra à fome, que os organismos trabalhem para o nada, que os políticos façam o que querem, que a realidade (a que ainda julgávamos poder agarrarmo-nos, se alguma houvesse ainda) tem dois muros e nada mais que dois muros, o do combustível e o dos cereais. Respiro fundo e mudo de página.
A alucinação agrava-se, o delírio acompanha-a. Mas ainda fujo, de tanto asco sentido, ao embotamento emocional: Pinto da Costa dá lição aos alunos do “Carolina”, diz a notícia, que grave é que seja notícia. Julguei que referiam a miserável Salgado, mas não: a realidade a que tento agarrar-me é bem mais azeda. Falam da escola. Sim, dessa, onde o telemóvel deu que falar, tendo servido para tudo menos para falar. Essa mesma escola que usa agora como antídoto o endoutrinamento de dragões. A gigantesca fotografia (o texto nem me dei ao trabalho de acabar) mostra a bem mais gigantesca corpulência do Pinto da Costa, mais poderosa do que nunca, mais poderosa do que os poderosos do combustível e dos cereais, mais poderosa do que ela mesma a encabeçar os futuros poderosos que na escola se encolhem a seus pés, a buscarem o holliganismo “educativamente” sancionado. Tão sancionado que chama a depor ao JN a nova-ex-nova-ex-mulher do Pinto dizendo-nos que “os alunos o adoraram”, ainda que a gente saiba que o adoram menos do que ela, de tão vendida que suplanta as Carolinas, a outra e a que deu nome à escola. O que a gente fica também a saber, em salvaguarda de esquizofrenia, é que Margarida Moreira, directora regional da DREN, se junta ao depoimento enaltecedor do Pinto para dizer que “todos somos poucos para a educação” e que “todas as entidades e pessoas são desafiantes”. Por ser directora da DREN e não do FCP fico eu desafiado na acuidade do pensamento, amplio a alucinação e emboto as emoções, para não rebentar de vez, nem comigo nem com esta corja a que ainda a presidente do Conselho Directivo da escola se juntou para dizer que “a má imagem da escola foi recuperada” com um homem que deu mote a um filme intitulado Corrupção. Preciso urgentemente de barbitúricos, mas continuo a enfrentar a realidade sem real.
Eis que a página seguinte nos oferece o país, este país onde, como no mundo, não sabemos como evitar a fome, este país que aparece noticiado como possivelmente dividido entre Pedro Passos Coelho e Manuela Ferreira Leite para sua futura condução. Que está dividido, qual exacta definição de esquizofrenia, entre os escombros de uma política de impostos mais austera do que a face da Leite e as palavras do Coelho pedindo-nos em cândida máscara que não tenhamos medo de mudar. Pois muitos de nós, penso eu ainda em restos da fuga à esquizofrenia, não teremos esse medo se Leites e Coelhos (antes alimentos fossem, que falta nos fazem) nos saírem da frente.
Na última tentativa de salvação da alucinação, do delírio e do emboatemento, viro a página e vejo: Cavaco Silva sorri (tanto quanto a rígida mandíbula e o miolo de político lhe permitem) em apoio a Durão Barroso, sorri em véspera do Dia do Trabalhador para afirmar que vai escolher uma data simbólica para a Europa, para esta Europa onde também não chega o pão, para promulgar o Tratado de Lisboa. Pois que escolha, porque já a tem: a do anunciado milagre da redução dos pães.
Em 65 páginas, fiquei-me pela oitava. Porque o pasquim é pior do que de desinteresse. Não é ele o culpado da minha doença, mas é esquizómetro quanto baste do que connosco se vai passando. Mais páginas lesse, mais alucinações, delírios e embotamentos me podiam atacar. Não sei se é crónica, mas aguda foi certamente a minha disfunção social. Outro mundo e outra nação nos dêem e pode ser que a minha esquizofrenia se esvaneça.
Por precaução, vou deixar de ler (e já pouco o lia) este pasquim potenciador da doença.