domingo, 4 de janeiro de 2009

Requiem para Lisboa


Se Lisboa fosse um Requiem, tê-lo-íamos escrito mais belo do que muitos. Na chuva dos dias que nela houve, houve o céu limpo que lhe oferecemos, houve o abraço da chegada, que é sempre como se não o fosse porque estávamos já lá. Se Lisboa fosse um Requiem, as primeiras notas soariam baixinho no cuidado de acolher, em sobretudo cor de mel, em sorrisos cicerónicos que nos abrigam de muitas chuvas, no caldo verde a saber à felicidade com que enganámos a morbidez da composição. Se Lisboa fosse um Requiem, haveria gente cantando na brancura de uma casa onde pão e vinho sobre a mesa se abriu a gentes que traziam vestidos e a outras tantas gentes que sabem vesti-los. Haveria gente feliz a percorrer um bairro tão alto quanto a vontade de subir ao céu e de nele nos encontrarmos um dia sentados, sem anos contados, sem deuses maiores do que nós, com anjos como os que buscamos nos dias e nas noites ou com diabos sem género mas de pele e de alma frescas. Se Lisboa fosse um Requiem, teria jantares maravilhosamente servidos no bairro ainda alto, teria éter a fazer continuar o céu que lhe inventámos, só para descer ao feliz inferno de um cubículo onde outras gentes vivem de esvoaçados vestidos, só para sorrirmos nas gotas, feitas mais de éter que de chuva, de molhados desejos, nesse inferno ou noutros, procurados na retaguarda de um carro, num quarto com um adónis azulado em quadro que a noite veste de cobalto, nas mãos de um rapaz que inferniza um tão querido tio pelas palavras que não lhe dirige depois de tocá-lo. Se Lisboa fosse um Requiem, não saberia senão ver-se enganada no prenúncio da morte, ou não fossem imensamente nossos o sorriso e o gesto insistentes da Tarantella, o breve e sabido fingimento de sermos aqueles que não morrem nunca. Se Lisboa fosse um Requiem, teria um fim tão saudoso quanto mascarado: de Genet cantando amor, de Rufus-Judy ondulando as mãos como Amália, de um porno-terno a explicar porque há quem nos ame e quem não nos ame mais, de um telhado de onde pudemos ver o rio a que quereremos sempre voltar, de um tio que nos aquece a casa para nos recompor a partitura e nos fazer cantar menos mal. Se Lisboa fosse um Requiem, seria feita de nós, que nela fomos tanto quanto a vontade de sermos quem somos. Avé.

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