Porque tantas vezes nos esquecemos do que há tanto tempo está já escrito, fica Genet, na sua sempre tão bela escrita. Porque a sua vitória foi verbal, assim o disse; porque da sumptuosidade das palavras se socorreu; porque ter-se socorrido foi uma bênção para nós, se abençoados formos na compreensão de que a masculinidade nunca passou de um mar de fragilidades, de uma prisão de que só escapamos em ballet.
Ei-lo, há mais de 50 (cinquenta!) anos, numa passagem como só ele saberia tecer, como só ele saberia construir a partir da vida que reservada lhe esteve. Para fazer-nos chorar… e por mais.
Culafroy passeava entre lençóis, descalço. Vivia minutos leves como minuetes, feitos de inquietação e ternura. Chegou a aventurar-se num passo de dança em pontas, mas os lençóis formavam paredes suspensas e corredores, os lençóis imóveis e dissimulados como cadáveres uniam-se e podiam encarcerá-lo e estrangulá-lo. (…) Se tocasse o chão apenas com um gesto ilógico do pé esguio estendido, poderia tal gesto fazê-lo soltar-se, deixar a terra e atirá-lo por entre mundos de onde não voltaria, ao espaço onde nada poderia fazê-lo parar. Pousou de planta inteira o pé no chão, para lhe conferir uma segurança maior. (…) Aquela criança que nunca tinha visto um bailarino, nunca tinha visto teatro nem actor, com um sentido divinatório espantoso compreendeu um artigo de página inteira que só tratava de figuras, entrechats, battus-jettés, tutus, sapatilhas, tela, rampa e ballet. Pelo aspecto da palavra Nijinsky (a haste do N, a descida da argola do j, o salto da argola do k e a queda do y, forma gráfica de um nome que parece empenhado em desenhar o impulso com recaídas e pulos no palco de saltador que não sabe sobre qual dos pés pousar) adivinhou a leveza do artista, como um dia virá a saber que Verlaine não pode deixar de ser um nome de poeta-músico. Aprendeu sozinho a dançar, como aprendera sozinho a tocar violino. Dançou, portanto, como tocava. Todos os seus actos foram servidos por gestos, não ao serviço daqueles, mas de uma coreografia que lhe transformava a vida num ballet perpétuo. Rapidamente se pôs em pontas e em todo o lado: no talho, quando apanhava achas de lenha, no pequeno estábulo, debaixo da cerejeira… Punha os tamancos de lado e dançava em cima da erva com peúgas de lã preta, de mãos presas à ramaria mais baixa. Na vida, povoou os campos com uma multidão de figuras que queriam passar por bailarinas de tutu de tule branco, que se mantinham um menino de escola pálido, de bibe preto, a procurar cogumelos e dentes-de-leão. (…)
Nossa Senhora das Flores
Jean Genet, 1951
(Difel, 1987; Trad: Aníbal Fernandes)
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