segunda-feira, 28 de abril de 2008

Emendar o Quadro


É tão curiosa a pequenez que às vezes desvendamos à vida! Os factos, que tantas vezes recusamos ler mais limpidamente, podem conter toda a imensidão dessa pequenez. Quando jantamos e bebemos envolvidos sob a brisa dos nossos lugares e exigimos tranquilamente que não nos gritem. Quando dançamos envoltos de fumo a respirar a abençoada felicidade, ainda que o peito rebente. Quando nos rimos do que julgámos ser trágico. Quando a amizade volta de uma terra apenas distante na geografia. Quando um ser de olhos ainda tristes sente ter renascido numa cirurgia. Quando, já exaustos do que não nos serve, dormimos porque todas as luzes nos pedem descanso no seu flamejo.
Fazer uma leitura assim dos factos nada tem de inédito. Mas tem o sentido inteiro de que valeu a pena chegarmos até aqui, porque a vida nunca é pequena. Afinal, a única ciência da vida é a descoberta cada vez menos dolorosa do que nela não queremos. Para depois podermos querer euforicamente tudo o resto. Da mesma ciência restará o livro que escreveremos sem necessidade alguma de edição: o livro de nós, de nós que jantamos e bebemos, que dançamos em nuvens mais feitas de amor do que de fumo, que voltamos de outras terras sem nunca termos verdadeiramente partido, que nos sabemos renovados na pele. Ou, o mesmo será dizer, o livro que se enche de parágrafos repletos dos factos que para nós realmente contaram, contam e contarão na vida.
O fundo verde enaltece toda essa imensa pequenez dos factos. Em cor de esperança, sem a qual nunca poderíamos dizer estarmos vivos. Da cor sobre a qual podem dormir seres de tão diferentes formas, ainda que com a expressão da mesma substância. De uma substância recoberta de pormenores que nuca o são, quando pintada a tela da vida e da morte. Pormenores que nos sossegam e abraçam, em que uns de nós se representam mais incapazes de sorrir e de mostrar sossego do que outros.
Apesar de nuvens mais ou menos negras, todos nós, que ali estamos, ainda nos vemos separados da morte. Ainda tombamos, mas para o lado que lhe é contrário. Por isso mesmo, a única coisa que quereríamos emendar no quadro seria a expressão da morte. Mudá-la para sabermos, acima das constelações que o céu nos oferece dia a dia, rirmo-nos tranquilamente dela e fazê-la incapaz de se rir de nós. Depois de guardados todos os pequenos mas imensos factos. Depois do livro bem encadernado.
E só depois de sentirmos que já é tempo para um depois de nós.

2 comentários:

Nice disse...

Arrumar os factos bem arrumados;
Deixar que a tristeza faça parte de nós;
E depois deixarmo-nos surpreender com toda a imensidão dessas pequenas coisas que, não sabemos como, ainda conseguimos sentir;
O 'depois de nós' parece estar perto, mas o salto é tão maior que as pernas! É é mesmo assim...
Os velhos fa(c)tos ainda espreitam da mala entreaberta, enquanto os novos se assustam ao entrar.
É preciso assustar de vez os velhos para querer mais, mais para viver, mais daqueles que conseguimos escolher de entre o entulho.
Mais mas não do mesmo, mais de algo que só ainda provámos,
ou já esquecemos...
Mais, mais, mais!
Mas as malas que carregamos vão pesando menos...

Beijos

Nice

Anónimo disse...

Ao revelares por esta via a beleza de factos que nem sempre é clara, mostras como podemos ver claro já quando as luzes nos pedem um merecido descanso... então, os olhos que antes nada viam, vêem agora claro, pois neles brilha o desejo imenso de emendar o quadro e ser mais, que por certo tentarão tudo para guiarem seres bem muito mais felizes.
Porque vale mesmo a pena emendar o quadro...
MM, Muito de Mim
está em ti.