quinta-feira, 1 de maio de 2008

Esquizómetro


Breve mas elucidativa definição de esquizofrenia: “doença mental grave que se caracteriza por (...) alterações do pensamento, alucinações, delírios e embotamento emocional com perda de contacto com a realidade, podendo causar disfunção social crónica" (Wikipédia).

A leitura do JN de ontem resultou-me em experiência absolutamente potenciadora de esquizofrenia, espero que temporária. As duas primeiras páginas expandem os recentes anúncios do aumento dos cereais, com valores estimados em TRINTA E SEIS POR CENTO para o PÃO, no mundo e na nação. A alucinação começa: apelos da ONU e da Rede Europeia Anti-Pobreza são reduzidos a pequenas caixas contrastantes com a imensidão do assunto. Pelos vistos, mas sobretudo pelos não-vistos, a pobreza é inevitável, incapaz de fazer frente aos políticos que não nos saem da frente. Do pensamento salto para o delírio, no desespero por falta de realidade, que julguei que ainda nos assistia, mas que afinal não assiste coisíssima nenhuma (não defenda eu o assistencialismo). O embotamento emocional também começa a dar sinais: vou ficando sem emoções, porque o mundo e a nação repetem o inominável - que se morra à fome, que os organismos trabalhem para o nada, que os políticos façam o que querem, que a realidade (a que ainda julgávamos poder agarrarmo-nos, se alguma houvesse ainda) tem dois muros e nada mais que dois muros, o do combustível e o dos cereais. Respiro fundo e mudo de página.
A alucinação agrava-se, o delírio acompanha-a. Mas ainda fujo, de tanto asco sentido, ao embotamento emocional: Pinto da Costa dá lição aos alunos do “Carolina”, diz a notícia, que grave é que seja notícia. Julguei que referiam a miserável Salgado, mas não: a realidade a que tento agarrar-me é bem mais azeda. Falam da escola. Sim, dessa, onde o telemóvel deu que falar, tendo servido para tudo menos para falar. Essa mesma escola que usa agora como antídoto o endoutrinamento de dragões. A gigantesca fotografia (o texto nem me dei ao trabalho de acabar) mostra a bem mais gigantesca corpulência do Pinto da Costa, mais poderosa do que nunca, mais poderosa do que os poderosos do combustível e dos cereais, mais poderosa do que ela mesma a encabeçar os futuros poderosos que na escola se encolhem a seus pés, a buscarem o holliganismo “educativamente” sancionado. Tão sancionado que chama a depor ao JN a nova-ex-nova-ex-mulher do Pinto dizendo-nos que “os alunos o adoraram”, ainda que a gente saiba que o adoram menos do que ela, de tão vendida que suplanta as Carolinas, a outra e a que deu nome à escola. O que a gente fica também a saber, em salvaguarda de esquizofrenia, é que Margarida Moreira, directora regional da DREN, se junta ao depoimento enaltecedor do Pinto para dizer que “todos somos poucos para a educação” e que “todas as entidades e pessoas são desafiantes”. Por ser directora da DREN e não do FCP fico eu desafiado na acuidade do pensamento, amplio a alucinação e emboto as emoções, para não rebentar de vez, nem comigo nem com esta corja a que ainda a presidente do Conselho Directivo da escola se juntou para dizer que “a má imagem da escola foi recuperada” com um homem que deu mote a um filme intitulado Corrupção. Preciso urgentemente de barbitúricos, mas continuo a enfrentar a realidade sem real.
Eis que a página seguinte nos oferece o país, este país onde, como no mundo, não sabemos como evitar a fome, este país que aparece noticiado como possivelmente dividido entre Pedro Passos Coelho e Manuela Ferreira Leite para sua futura condução. Que está dividido, qual exacta definição de esquizofrenia, entre os escombros de uma política de impostos mais austera do que a face da Leite e as palavras do Coelho pedindo-nos em cândida máscara que não tenhamos medo de mudar. Pois muitos de nós, penso eu ainda em restos da fuga à esquizofrenia, não teremos esse medo se Leites e Coelhos (antes alimentos fossem, que falta nos fazem) nos saírem da frente.
Na última tentativa de salvação da alucinação, do delírio e do emboatemento, viro a página e vejo: Cavaco Silva sorri (tanto quanto a rígida mandíbula e o miolo de político lhe permitem) em apoio a Durão Barroso, sorri em véspera do Dia do Trabalhador para afirmar que vai escolher uma data simbólica para a Europa, para esta Europa onde também não chega o pão, para promulgar o Tratado de Lisboa. Pois que escolha, porque já a tem: a do anunciado milagre da redução dos pães.
Em 65 páginas, fiquei-me pela oitava. Porque o pasquim é pior do que de desinteresse. Não é ele o culpado da minha doença, mas é esquizómetro quanto baste do que connosco se vai passando. Mais páginas lesse, mais alucinações, delírios e embotamentos me podiam atacar. Não sei se é crónica, mas aguda foi certamente a minha disfunção social. Outro mundo e outra nação nos dêem e pode ser que a minha esquizofrenia se esvaneça.
Por precaução, vou deixar de ler (e já pouco o lia) este pasquim potenciador da doença.

1 comentário:

com senso disse...

O pior é que esta qualidade de imprensa parece espalhar-se como mancha de óleo, por todas as publicações e restantes meios de comunicação.