António Guerreiro
Expresso – Actual – 09 de Janeiro 2010
A vontade de ver os factos que interessam ao autor. Uma via. Talvez fáctea.
“Todo o país está podre de estagnação, vós moveis um pé no lodaçal e ficais estoirados do esforço ao fim do dia. Mas nunca vos perguntais para quê, nunca vos perguntais o que isso quer dizer, nunca vos perguntais com que direito haveis de ser boi até ao fim da vida. Parai, ó estúpidos, suspendei um momento esse vosso trabalho animal e perguntai-vos se é essa a vossa vontade, se um instante da vossa tarefa cavalar é isso com que sonhais para vosso prazer. Porque é que não fazeis aquilo que quereis? Porque é que não ergueis o vosso berro de revolta? Não falo apenas dos que suam que se fartam por um bocado de pão. Não falo apenas dos que amocham como bestas por uma tigela de caldo. Falo de vós todos, dos honrados pais de família, os honrados funcionários com um ordenado a tanto a hora da cronometragem, os honrados comerciantes de pele esverdeada dos dias sem sol, as dignas esposas zeladoras da sua castidade até que à noite o marido lhes suspenda o zelo, as donzelas com o desejo fechado a cadeado, os politiqueiros de opinião trancada e partidária, os polícias do zelo pistoleiro, os futebolistas a tanto o pontapé, jornalistas, médicos, advogados – toda a imensa manada trabalhadora que se abate sobre o país e lhe entala a movimentação. Mas falo mesmo dos tubarões do capital, banqueiros atolados em moedas que são as fezes, o excremento da ganância e da vileza, grossos empresários que quereis empresariar o mundo, o céu com a vossa fumarada, as almas com as vossas cadeias e os rios e os peixes deles com a vossa matéria excrementícia...”