domingo, 30 de março de 2008

Rever Belize


Belize é uma pérola maravilhosa, numa encenação não menos maravilhosa chamada Anjos na América. Falando com o moribundo Roy, a excelência do esterco humano, diz-lhe o que todos nós deveríamos ser capaz de proferir a alguém assim. As palavras são igualmente válidas para que as digamos a nós mesmos. Belíssimas, sabiamente cáusticas, num equilíbrio de humor e de seriedade que toca o mais fundo do ser.

Lov’ya, Belize.

Roy- Como são as coisas depois?
Belize – Depois?
Roy – Um inferno ou um paraíso?
Belize – É como São Francisco. Uma cidade, cheia de ervas daninhas, mas ervas daninhas florescentes. A cada esquina, uma multidão destroçada… e qualquer coisa nova e perversa, a ascender diagonalmente nessa direcção. Janelas ausentes em todos os edifícios, como bocas desdentadas. Vento arenoso… e um céu cinzento e altaneiro, pejado de corvos. Pássaros pungentes, com lapidações como rubis. E vacas a cuspirem ao vento. E cabinas de voto. E toda a gente em vestes Balenciaga, com corpetes vermelhos. Enormes palácios dançantes cheios de música e luz. Impureza racial e confusão de géneros. E todas as cidades são crioulas. Mulatas. Morenas, como as fozes dos rios. Raça, gosto e história finalmente suplantados. E tu não estarás lá.
Roy – E o céu?
Belize – Isto era o céu, Roy!
Roy – Quem és tu?
Belize – Sou a tua negação. Sou apenas a sombra que te recairá sobre o túmulo.

terça-feira, 25 de março de 2008

Amor SEM Insultos


“Para trás ficou um doloroso processo de coming out”.

Uma excelente (e, por isso, rara) reportagem.

O dia correu-me melhor, graças a estas companheiras.

domingo, 23 de março de 2008

Revisitada


Porque não pode deixar de sê-lo para mim. A descobrir, em cada revisitação, pérolas tão maravilhosamente curtas quanto sábias. Como esta. Tout court.


"A felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor falta de delicadeza desfeia-a, a menor palermice embrutece-a".

Marguerite Yourcenar

quinta-feira, 20 de março de 2008

My Song


Fosse o sentimento quase estranho

Este sentimento que é de dentro

E o dinheiro fosse quase todo

Para albergar-nos na casa que é a lua


Seja então quase o melhor que sei fazer

Na certeza dessa voz que me entoaste

E te farei mais do que o melhor já feito

Porque prenda das mais belas foi a tua


Dizer agora que a canção é mais que minha

No perdão por te pores todo nas palavras

Maravilhoso é que estejas tu no quase mundo

E comigo derrotes o teimar em dizer quase


A lua, de tão cheia, por certo foi um nada

Mas comigo foi gentil na escrita do poema

Porque toda foi a voz nesses teus olhos

De que o luar para toda a vida fará tema


quarta-feira, 19 de março de 2008

Namoro VERSUS Parceria




O rapaz do meu coração foi ao médicO. Não se nega que o referido profissional tenha tido a decência MÍNIMA de lhe perguntar como ia de companhia amorosa, o que nos tempos que ainda NÃO correm já não é mau. Mas também não se nega que tenha o médicO um género, que (in?)conscientemente diferenciou para designar tal companhia. O rapaz do meu coração ouviu ser-lhe perguntado (a questão tinha sentido, a forma não) se tinha “namoradA OU pareirO”. Pois fez o senhor doutor aquilo que a gente já sabe que os senhores doutores fazem: esquecer o género quando lhes interessa, afirmá-lo discriminadamente quando não lhes interessa.
Mas a gente até sabe mais – que de interesse ou não interesse não se trata, mas sim da insuportabilidade (imperdoável para que qualquer profissional saiba o que anda a fazer) da leveza que o ser deve possuir quando de amor se trata. Da insuportabilidade de perceber que o amor esbate o género na nuvem terna que o envolve. Falta saber se o médico tem namoradA, namoradO, parceirA, parceiro, se lhes troca o género e se é capaz de olhar para si mesmo quando não consegue aproximar-se dos utentes ao contrário do que Hipócrates lhe quis ensinar mas não conseguiu. Não falta saber que é apenas uma das tantas pessoas que continuam a chamar-se profissionais sem conseguirem sê-lo como deve ser. Nem falta perceber que o rapaz do meu coração tenha dado por si, logicamente, a ter que me contar o episódio que retrata cada um dos dias em que continuamos a não funcionar.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Depilem-se



A discriminação positiva é, nisto, assumida: mais do que de outros, gosto tendencialmente de filmes sobre e com mulheres, porque gosto, mais do que de outras, de realidades sobre e com mulheres. Estes filmes são os que contrariam a minha impaciente impulsão para abandonar a sala antes do fim (o cigarro continua a tentar-me descontroladamente quando, não raras vezes, o ecrã não me preenche mais do que o craving). Caramel conseguiu, contudo, levar-me a crer seriamente que não foi a discriminação positiva que me reteve até à última das legendas. Porque mais do que ser feito sobre e com mulheres, é repleto de afectos sem designação saliente de género, idade ou orientação sexual. A comoção foi recorrente, a que talvez a mão que amorosamente apertei no escuro enquanto me esquecia do cigarro tenha ajudado. A retratar a escuridão a que ainda sou obrigado para apertar confortavelmente a mão que me acompanha (no cinema como na vida) e que a torna menos confortável quando as luzes se acendem, está uma destas maravilhosas mulheres. A mulher que, por procurar uma outra que a ame, é acusada de “não gostar de ninguém”, ou não soubéssemos nós, embora Caramel nos avive a memória das dores, que os imaginários colectivos continuam insuportavelmente a querer fazer com que o amor “entre iguais” seja um amor “entre ninguéns”. Caramel sabe mostrar da forma mais sentida, porque subtil, o que são as dolorosas contenções do amor – de uma mulher por outra, de outra por um homem que não a merece, de outra que não suporta o peso do envelhecimento, de outra que retalha uma fingida virgindade para poder casar condignamente, de outra que se destrói na escolha entre o cuidado a uma idosa e o cuidado de se entregar a um amor que a faça amar a si mesma. Com um mínimo aceitável de bom senso, ninguém pode dizer que as razões eminentemente políticas para as contenções aqui filmadas não passam do Líbano. Porque, obviamente, passam por todos os cantos do mundo, mesmo do que se diz civilizado e pacífico, esse mesmo mundo que acusa “distantes” paragens de não alcançar a civilização, mas que raramente produz obras cinematográficas desta beleza e verosimilhança. Pois então que haja discriminação positiva: em relação a mulheres como estas, a mundos “não civilizados” como este, a todas as perdurantes criatividades que nos enriquecem como pessoas, como é o caso de Caramel. Para discriminar negativamente, e de forma implacável, tudo o que nos queira fazer menores, menorização que Caramel brilhante e louvavelmente contraria.
A depilação é apenas mote para tudo o que está antes, durante e depois dela.

domingo, 9 de março de 2008

Vida para Medhi




Medhi Kazemi ama. É um rapaz como tantos outros, com a pesada diferença de ser iraniano. Medhi pode ser condenado à morte se voltar ao seu país, depois de já desaparecido o seu ex-namorado, condenado e morto pela mesma razão: amar quem o Irão não permite. Medhi pede desculpa por amar, o que é o mesmo, no seu e em tantos outros casos, que pedir desculpa por se ser quem gostaria de se ser. Por sê-lo com alguém que dele goste. Medhi faz-nos ter vergonha pelo que não se pode, nem se quer, negar: que se nega, no mundo em que vivemos e à sombra da morte, o mais vivo dos sentimentos. Medhi é como qualquer um de nós: ser humano privado do que de mais válido podemos ter nas mãos. Basta que outros maiores (!?) senhores se levantem para dizer: ou te negas ou morres. Muita e feliz vida, Medhi.

segunda-feira, 3 de março de 2008

E se trocassemos géneros?


A respeito da morte de Luna:

“Uma amiga do travesti Luna, …; Luna - de nome verdadeiro Walace Kefler…”
JN – 03 de Março de 2008


O que é, isso sim, verdadeiramente impressionante é como em tão, tão, tão curto bocadinho (repetido em tudo quanto é pasquim disfarçado de jornal) se concentra todo, todo, todo o erro que motiva o incessável sofrimento e que leva à morte! Quando é que a porcaria da linguagem vai mudar, obviamente a começar pela comunicação social, para que se perceba de vez as porcarias ainda existentes no mundo em que vivemos?

Proposta: passarmos a dizer “Deus NossA SenhorA Jesus Cristo”, “O nossO Pátria” e “O Família”. Alguém duvida que o mundo se escandalizasse pela troca dos respectivos géneros e desatasse a barafustar por ter havido uma gravíssima falha no que está escrito? Eu não.
Pode ser que logo a seguir um número significativo de pessoas se escandalize porque as gravíssimas falhas são as de não ser nem travesti, nem masculino, nem “de nome verdadeiro” (o que é isso!?), a não ser o que escolheu: LUNA!.
BeijnhAs Fácteas (aqui se assume a desejável troca).

domingo, 2 de março de 2008

Talvez




Talvez amar seja um talvez. Não que se faça o sentimento de uma dúvida metódica, mas de uma dúvida do coração, que de método pouco tem. Acreditamos que damos ao coração os métodos que o quotidiano nos faz impor ao que vivemos. E depois erramos, para acertarmos na dúvida e viver mais vivamente. O talvez do amor é-me a certeza mais errante que me forcei a possuir. É um talvez que me faz perder o medo paralisante dos necessários medos sem os quais não temos coragem. Talvez nada disto seja certo. Mas o que há em nós de certo sempre que a tristeza da certeza já não serve? Talvez haja apenas o talvez. Sabe alguém, sem talvez, do que falo. No talvez a que comigo se abraça.
A abraçar mais do que nunca, para esquecer o que é talvez.

O Nobel que merecemos


Sabe, quem bem e de há longa data me conhece, que nunca necessitei do Grande Prémio para venerar (sim, venerar) este senhor. Não necessitarei da sua morte, se essa palavra pudermos algum dia dizer a seu respeito, para lhe prestar o tributo que a presença dos seus tantos livros cá por casa atesta há muito. É talvez a Saramago que devo a minha admiração pelo que pode a constelação de letras, frases e parágrafos ensinar-nos sobre o que somos. Ensinou-me ele como ninguém, ao perguntar-se: Que farei com este livro?, que “servem as palavras para isto: tão certas são para errar, como erradas para acertar”. Enquanto isto não soubermos, não sei o que possamos saber.


Terminada a leitura (absolutamente sorvida como o mais delicioso dos néctares) do livro de Fernando Venâncio, José Saramago – A Luz e o Sombreado (Campo das Letras), fica este post, inspirado pela passagem que transcrevo (me perdoe o autor o possível abuso dos seus direitos). Portugal merece o Nobel da Literatura que tem, o que talvez queira dizer piores do que melhores coisas de nós, a julgar pelo conteúdo. Era bom, talvez, que pensássemos mais sobre isto.


"Quando a TVI vem entrevistá-lo, [Saramago] aproveita para “pôr a claro o assunto [da eventual atribuição do Nobel]”. Fá-lo por pontos. Primeiro, o dinheiro é dos suecos, e eles dão-no a quem entenderem. Segundo, há que acabar com esse implorar da “esmolinha” do Nobel. Terceiro, o prestígio da nossa literatura não depende de tal prémio. Quarto, se a quantia fosse bastante menor, pouco se importariam os escritores com ganhá-lo. E, quinto, a franqueza exigiria que eles confessassem que, neste assunto, é o dinheiro que lhes interessa. Mais tarde, anotará que, segundo um jornalista espanhol, estas, ou similares, declarações lhe põem o Nobel “em risco”. E daí? Se, “por hipótese absurda”, a Academia sueca lhe desse a escolher entre o prémio e um livro que se propusera escrever, o autor não hesitaria em responder que guardassem a importância".


Um beijo sincero, Saramago.

Que é como sei agradecer a quem verdadeiramente gosto e me dedico.